quarta-feira, 14 de junho de 2017

A minha vida dava um filme

A minha vida quando muito poderia dar um mini-conto bem chato, por isso, irei buscar inspiração para a minha vida dava um filme, à vida da minha avó materna, Manuela da Conceição Andrade Coelho.

Nasceu em Lisboa, a 17 de Junho de 1899, signo gémeos do Zodíaco, serpente no Horóscopo Chinês.  A sua mãe Luísa Barnabé era filha de um juiz, ficou à espera da filha sem ser casada e foi expulsa de casa pelo pai Juiz. A mãe dela e os irmãos visitavam-na às escondidas.
Sustentou-se a si e à filha como costureira. Desde manhã cedo até ao final do dia usava espartilho. Vestia também sob a saia, uma outra  azul escondida por ser monárquica.
O pai da minha avó, Joaquim Guilherme Andrade Coelho perfilhou a filha, assim como tinha perfilhado uma filha mais velha, Laura Flávia e perfilhou depois o filho Vítor que teve com uma outra senhora. Não era adepto do casamento e só no final da vida é que casou com a mãe do último filho.
A minha avó teve uma educação esmerada, fez a 4ª classe, aprendeu  francês e a tocar piano e morou com a sua mãe até aos dezassete anos, depois teve de ir morar para casa do pai, onde também residia a mãe deste.
Quando foi morar com o pai ele estranhou os "mimos" com que a mãe a tinha criado, frustrado com o facto dela não comer atirou-lhe com um prato.
A minha bisavó, sua mãe, morreu aos quarenta anos, penso que do coração, quando a minha avó tinha dezoito anos e ela fechou-se no quarto a chorar e sem comer durante dias.
Na casa do pai, a minha avó ia com a criada às compras e a minha trisavó, sua avó, queixava-se que não era bem servida no Talho, tendo‑lhe retorquido a minha avó que isso sucedia porque o homem do Talho gostava dela. Foi uma tragédia, "caiu o Carmo e a Trindade" a minha trisavó gritou e queixou-se ao filho, que ela era viúva desde jovem e nunca mais tinha olhado sequer para homem nenhum.
A minha avó era muito bonita, tinha o cabelo muito escuro, olhos cinzentos e uma pele muito branca (a sua mãe Luísa Barnabé tinha o cabelo louro escuro e olhos azuis).
O meu bisavó dava pouco dinheiro à minha avó. Ela queria comprar chapéus e ele dizia-lhe que usasse mantilha, aí ela arranjou emprego como modelo, passava roupas para senhoras e já teve dinheiro para os chapéus.
Teve um primeiro noivo que era um rapaz rico e de boas famílias e morreu com uma pneumonia.
Ficou depois noiva de um rapaz que era marinheiro e tinha uns bigodes compridos.
Estava a fazer compras para o enxoval quando conheceu o meu avô, Eugénio Beltran Pepe.
O meu avô nasceu em Serpa, era o mais velho de vários irmãos. Perdeu o pai cedo e assumiu-se como chefe de família. Ainda adolescente veio trabalhar para Lisboa.
Era uma pessoa muito especial, tinha muitos amigos a quem era capaz de dar a camisa que vestia. Nas fotografias vejo-o como um ar simpático, bonito e para o louro. Devia ser um sedutor para ter conseguido arrebatar a minha avó e fazer com que deixasse o noivo número dois.
Casaram e tiveram um primeiro filho que morreu ao nascer. Depois tiveram uma menina de olhos azuis a quem chamaram Luísa. 
Uma das irmãs mais novas do meu avô, Valentina, contraiu  tuberculose - era jovem, bonita e gostava de cantar imitando cantores de ópera - e morreu com vinte e poucos anos. Antes de morrer infelizmente contagiou a sobrinha que teve meningite tuberculose. A minha avó tinha uns óculos especiais de protecção para estar com a filha quando se tentou salvá-la com radiações. Não foi suficiente e a Luisinha morreu com pouco mais de dois anos de idade.
Depois tiveram a minha mãe, Eugénia que cresceu saudável, andou no colégio alemão e tinha tranças louras. O seu cabelo foi escurecendo e chocou as tias ao cortá-lo curto. Um dia conheceu o meu pai, transmontano a trabalhar então em Lisboa. Casaram e foram viver para o Norte. Tiveram três filhas que nasceram todas em Lisboa.
O meu avô morreu quando eu tinha seis meses. Pelo que me contaram, os meus avós eram diferentes mas completavam-se, gostaram sempre um do outro e eram muito amigos. 
Eu conhecia-a como  minha avó,  a vestir-se de escuro, com um carrapito, linda, Contava-nos histórias, fazia-nos cafuné para que dormíssemos a sesta, dava-nos chi-corações  - não havia nenhum abraço como o dela.
Íamos esperá-la à estação ou íamos ter com ela a Lisboa. A sua casa ficava na Avenida Duque de Ávila - um andar arrendado, penso que o 2º esquerdo do nº86 (o prédio já não existe - naquele prédio os vizinhos eram amigos) com um corredor comprido cheio de coisas misteriosas para descobrirmos, como o cavalinho de pau guardado na despensa, a casa de banho com chão de losangos pretos e brancos e tina com pés, o quarto com a janela para uma rua estreita e escura, a sala com uma pele de leão e o piano. 

A certa altura passou a ficar connosco mas sempre com saudades de Lisboa, dos seus amigos e da sua casa. E estava connosco quando morreu do coração.

domingo, 16 de outubro de 2016

Natal

Foi por pouco, muito pouco.
José, o seu filho mais novo nunca ligou aos estudos, faltou-lhe o pai muito cedo e revoltava-se por tudo o que não tinha. Meteu-se a conduzir sem carta, nem idade. Pelo caminho, encheu várias vezes o depósito do carro sem pagar, tirou‑lhe dinheiro às escondidas a ela e aos irmãos, e pior ainda, aos vizinhos.
Ela foi fazendo o que podia. Tirava da pensão que mal lhe chegava e pedia emprestado à família e amigos para acabar com os processos, salvar o seu filho. Em casa zangava-se com ele, que não lhe respondia. Não tinha um mau fundo. Tinha era azar e falta de cabeça. Andava com más companhias. Não pensava primeiro, antes de as fazer.
Até que chegou o dia que lhe escapou um processo. O José quis esconder-lhe o que se passava, deu uma morada errada ou de uma ex-namorada, sem se lembrar depois que assim não ia saber da notificação. Levaram-no detido para o julgamento e foi condenado numa multa. Por vergonha ou confusão continuou a não lhe contar. Deixou que o tempo passasse, sem ligar às cartas que lhe enviavam, sem fazer nada e sem pagar nada. O tempo passou e veio de novo a polícia buscá-lo para cumprir pena de prisão em substituição da multa. Foi uma aflição. A polícia à porta, ele a tentar consolá-la, “pode ser que assim eu aprenda mãe”. Repetia o que ela lhe tinha dito antes tantas vezes.
Nunca mais se esqueceria, daquele dia 23 de Dezembro, todos na azáfama da celebração que chegava, e ela sem os seiscentos euros precisos, da pena esquecida. Esgotados de outras vezes até os irmãos e os poucos amigos, só com a lembrança da quadra, a receberam. Chorava ela que ficaria sozinha na sua casinha, não poderia ir a casa dos outros filhos e noras, sabendo o seu mais novo na prisão. Juntaram o dinheiro, conseguiu ser atendida e que lhe fizessem as contas do que era preciso pagar.
No dia 24, deixaram-no sair da prisão. Só ficou lá um dia e uma noite, mas viu-o triste e mais pequeno e só voltou a ser ele, quando chegaram à rua onde moravam. Concordou com ela que nunca mais, prometeu-lhe de novo que iria ser diferente e como das outras vezes, ela quis acreditar.
Depois de um tão grande susto, tinha o seu filho em casa e por isso para ela também foi Natal.


segunda-feira, 25 de julho de 2016

Desafio de Escrita

Desafio de Escrita no blogue da Fê blue birdaqui


"Aquele corpo tão falsamente provocante que caminhava para o abismo, era o seu, e ela por mais que tentasse não conseguia aliená-lo.
Detestara-o naquela noite e em todas as outras noites em que o usava. Queria que ele não lhe pertencesse, sentia a maldição que pesava sobre si e desejava ser uma pessoa normal, que se entrega, que recebe, que aceita e nada receia.
Só via falência na sua vida. Não existia nenhuma razão no mundo que a pudesse impedir.
A quem poderia interessar que ela vivesse, que trabalhasse, que amasse. Para quê? Para quem?
A desculpa da euforia permanente produzida pelo álcool era mais razoável, pois conseguia afastar a falta do amor que não conheceu, dos beijos que não deu, dos livros que não leu e da vida que não viveu.
Mas hoje estava sóbria!
Eram precisamente seis horas e dezoito minutos quando ela decidiu o seu destino"


(fotografia de Duarte Sol)

Decidiu que ia morrer.
Tomada a decisão, arrepiava-a poder também falhar a meio e foi por isso que decidiu atirar-se da ponte, que ficava perto. Ainda estava escuro, mas não tardaria que o sol nascesse. Um estranho silêncio antecipava a madrugada. Estacionou o carro num parque perto e começou a caminhar até ao meio da ponte.
Sentia como nunca o ar frio no rosto, como se lhe lavasse a cara e confirmasse que estava certa.
Foi então que o viu. Mesmo no local que ela tinha escolhido, um homem de costas para ela, debruçava-se sobre a protecção, ali onde o rio era mais fundo.
Ele ouviu os seus passos e despertou do seu torpor. Virou-se para ela. Era um homem de meia idade, com cicatrizes de um lado do rosto que ao invés de o desfigurarem, realçavam o azul intenso dos seus olhos e a atraíram.
Subitamente, sem saber porquê, quis salvá-lo.
Lembrou-se das muitas vezes que tinha conseguido reinventar-se, apesar de todos os revezes, nunca antes até àquela hora, tinha pensado em desistir.
Começou a falar com ele. Disse-lhe que tinha frio e passou logo depois para todos os argumentos que conseguia lembrar-se para que ele não se atirasse,  Ele era muito mais forte que ela. Se o resolvesse fazer, não conseguiria impedi-lo.
Percorreu todos os lugares comuns na procura da ideia salvadora, que não conseguia encontrar. Ele só olhava para ela, sem lhe responder, sem que nada no seu rosto ou olhar lhe dissessem que estava sequer a escutá-la.
Até que ele lhe disse: “está mesmo frio. Vamos mas é tomar o pequeno-almoço”.
E foram. Os dois.
 Algum tempo mais tarde, quando já começava a conhecê-lo, a entregar-se, a receber e a aceitar, soube que ele não tinha ido ali para se matar, mas que apenas gostava de olhar para o rio.

Labirintos da Mente



Está tudo escuro, sei que tenho de mexer-me, levantar-me, alguém está ali e vai fazer-me mal, mas não consigo, os meus membros não me obedecem, não consigo mover as pernas para sair da cama, nem levantar os braços, ou sequer deslocar o corpo, continuo deitada, não consigo sequer gritar, pedir ajuda. São apenas segundos, mas parecem durar uma eternidade, e então acordo. Quase grito, ao recuperar a capacidade de o fazer. Levanto-me e acendo a luz. Vou beber água, vejo o meu rosto no espelho da casa de banho. Percebo que terá sido um pesadelo, mas a incapacidade que senti paira sobre mim. É noite ainda e volto para a cama. Tapo-me com os cobertores. Por me ter levantado, fiquei fria. Assombra-me o que antes senti e demoro a conseguir adormecer.
Tenho a oportunidade de ir até à capital para uma formação. Chego no dia anterior e vou passear antes que escureça. Vejo-me numa parte da cidade em que nunca deverei ter estado antes. Imagino que ao dobrar a esquina, irei ver um prédio rosa. Dou alguns passos, viro à direita, e vejo-o, ao prédio rosa, com um pequeno café na cave e uma loja de retrosaria. Sai de lá um senhor que segura a porta para uma menina sair à sua frente. Cá fora, dá-lhe a mão. Os dois passam por mim e afastam-se. Acredito que há anos vivi esse mesmo momento, mas é impossível. Há anos aquele senhor seria um jovem e a menina não teria sequer nascido.
Já não via o Rafael há alguns anos. Soube que se tinha começado a viver com uma rapariga e que depois se tinham separado. O que se passou entre eles, contou-me ele mais tarde, num final de dia em que nos encontrámos por acaso, mas em que não tínhamos planos para o depois, e fomos jantar juntos. Contou-me como quando conheceu a Sara, primeiro ficou fascinada por ela. Era bonita, engraçada e popular. Pouco a pouco começou a conhecer um seu outro lado de que não gostou. Descobriu-a manipulativa e insegura. Quis deixá-la e ela mostrou-lhe os cortes que fazia a si mesma. Linhas finas e vermelhas em diferentes estados de cicatrização no interior das coxas. Não percebeu como nunca antes tinha reparado neles. Ela disse que ia acusá-lo de os ter feito. Ficou com ela não por acreditar nisso, mas pelo choque que sentiu ao ver o mal que ela fazia a si própria. Um dia conseguiu que ela lhe explicasse porque o fazia e a resposta até parecia simples. Cortava-se para que a dor física aliviasse a dor de alma que a sufocava e lhe era insuportável. Acabou por ser ela a deixá-lo quando se encantou por outro e não voltou a vê-la.
Reencontro um antigo colega de trabalho, começamos a conversar e recordamos o passado. Quando estávamos a trabalhar na mesma empresa, às vezes íamos almoçar com outros colegas ao restaurante Benfica. Lembro-me de nós, mais jovens na altura, de algumas conversas, vejo-nos nas mesas de toalhas com quadrados brancos e azuis. Ele interrompe-me. As toalhas tinham toalhas com quadrados brancos e vermelhos, como havia também várias alusões na decoração ao clube do coração do dono do restaurante. Rejeito primeira essa ideia. Penso depois. O restaurante chamava-se Benfica, não faria sentido que tivesse outras cores que não as deste clube. Vejo de novo o que recordava, tudo continua igual, mas as toalhas nas mesas mudam e passam a ter os quadrados brancos e vermelhos.
Acompanho uma amiga que vai visitar a tia a um Lar. A tia criou-a, mas quando lá chegamos, ela não reconhece sequer a minha amiga. “Sou a Laura, tia, lembra-se de mim?” Não sei se a tia se apercebe da tristeza na pergunta e se é isso que faz com que responda que sim, mas naquele momento sabemos as três que a resposta é não, e essa consciência que partilhamos por instantes, antes da tia esquecer até a pergunta, une-nos. Saio cá para fora com a minha amiga, que está triste e me fala de como antes era a tia, uma mulher inteligente e lutadora, cheia de vida, criou os filhos e depois a sobrinha. O céu está cinzento e o ar frio. Paramos num café para nos aquecermos com um chá. Penso que não quero perder ninguém assim, ser esquecida ou esquecer-me de quem amo, de quem sou.





Capricho e Virtude



Tudo isso se passou num outro tempo em que as meninas eram virtuosas, iam à Igreja, aprendiam a obedecer aos pais, depois ao marido, e se deviam dedicar às lides domésticas e à educação dos filhos, com todo o desvelo.
Eduarda era muito bonita e tinha também a inteligência para aprender o que era esperado dela. Cedo se tornou o orgulho dos pais, mas a ela cresceu-lhe a vaidade.
Foi por capricho que naquela terça-feira ficou para trás e não foi como de costume com as amigas para casa.
Seguiu sozinha até à Confeitaria no centro. Abrira recentemente e era muito bem frequentada, até por grupos de senhoras no chá da tarde ou jovens como ela na compra de diferentes e tentadores bolos.
Sentou-se numa mesa perto da janela e pediu o folhado de limão.
Pareceu depois dedicar-lhe toda a atenção. Com a faca e garfo separou e cortou as lâminas de massa, açúcar e limão, em pequeninos pedaços, levou-os vagarosamente à boca e deixou-os derreter.
Sabia que pela montra era visível lá fora a sua figura sentada, meia de lado. O cabelo escuro entrançado e preso, a revelar o alvo pescoço e início do seu peito abraçado pelo vestido amarelo e justo.
Caprichara ainda mais do que habitualmente na roupa e no penteado.
Naquele dia, àquela hora, costuma passar por ali o André, explicador de matemática do seu irmão mais novo e no grupo dos seus conhecidos ou até de desconhecidos, o único que parecia permanecer completamente indiferente aos seus encantos. Passava por lá, para levar os croissants encomendados pela sua mãe. Ficara assim combinado, já que vinha dar a aula e passava pelo centro. Desde que iniciara as explicações há dois meses, não falhava o encargo e cada terça-feira, trazia-os sempre.
Ouviu a porta abrir e pressentiu que seria ele.
Virou ligeiramente o rosto para o poder olhar directamente e representar estar surpreendida com aquele encontro.
Era realmente o André que entrava, mas não vinha sozinho. Com ele entrou também a Ana Maria.
Um pouco mais velha que ela e com uma história bem conhecida na vila. Seduzida por um vendedor de fora, fugiu com ele, da casa dos pais. Regressou meses depois com barriga e os pais acolheram-na, e mais tarde ao neto, que adoravam.
Não foi assim tão bem recebida pelo resto das pessoas, sobretudo pelas senhoras de bem que a maldiziam nas conversas e se calavam quando se aproximava.
Até a sua mãe lhe disse para não conviver com a Ana Maria, como se pegasse a má sorte de ter sido abandonada.
Eduarda reparou que o André segurava a porta para que ela entrasse e que se olhavam os dois nos olhos com o enleio que ela queria ver nele, mas dirigido a si.
Por isso, não reparava nela, porque já estava enamorado, e pela Ana Maria.
O André viu-a e corou levemente, sem saber bem o que fazer.
Nessa altura, a Eduarda percebeu que era só a vaidade que a tinha trazido ali. Cumprimentou-os aos dois, ao André e à Ana Maria, sem falsidade ou hipocrisia, e depois de pagar o seu folhado de limão, foi-se embora.
Não comentou com ninguém o encontro, nem quando mais tarde foi tema de conversa que a Ana Maria tinha voltado a fugir, mas desta vez com o André.

E a Eduarda começou a compreender o que era realmente ser virtuosa.

Vício do trabalho


Ele tinha o vício do trabalho. Ela tinha o vício de gastar dinheiro. Foi um casamento feito no céu. Ele trabalhava. Ela gastava o dinheiro dele, com ela, com a casa e com ele. Assim, ele tinha sempre fatos e camisas na moda de qualidade para envergar, e quando regressava a casa, ao final do dia, encontrava um espaço acolhedor, onde por vezes ela também estava, embora às vezes já a dormir.
Mas, um dia, com a crise e a recessão económica foi despedido, “Teixeira, com grande pena nossa, temos de o deixar ir”. Ignoravam sem dúvida que ele fazia o trabalho de três, queriam reservar o lugar para o filho do primo do amigo, o Raul. Mais do que zangado, ficou espantado. Não estava à espera. Naquele dia veio mais cedo para casa. Laura não estava. Foi‑se deitar antes que ela chegasse e foi a primeira vez que tal sucedeu durante todos os anos que tinham estado casados. E para continuar com as novidades, foi também ela que se levantou primeiro. Não reparou, ou não quis reparar que ele ainda lá estava e saiu para as marcações no cabeleireiro e massagista. Ele percebeu. Voltou aos seus horários anteriores, saía cedo e tentava voltar tarde. Ainda procurou nova colocação. Enviou currículos, contactou antigos amigos e conhecidos, mas nada. Ter já passado dos quarenta não ajudava
Começou a passar o dia no Centro Comercial. No café, lia o jornal e com a net grátis procurava ofertas de emprego no seu Ipad. Passou a conhecer a empregada que o atendia, a Dores, e alguns dos clientes. Quando passou a frequentador habitual apercebeu-se que quando lhe perguntavam como estava, queriam realmente saber e não era apenas um cumprimento vazio. Lá no café, conversavam sobre as desditas da Dores, que não tinha sorte no amor. Já nos trinta e cinco, sozinha, ela era a primeira a conseguir brincar com o desgosto da maternidade adiada, enquanto afectuosamente lidava com todos os clientes. Estes eram muitos e variados, jovens estudantes com discussões existencialistas, absorvidos na primeira paixão ou desgostosos com a primeira decepção amorosa, professores da escola ao lado, a queixarem-se dos alunos e dos programas, solicitadores do escritório perto, estes últimos no café apressado da manhã ou em conversas com clientes. Às vezes, diferentes grupos de amigos, os de homens que discutiam sobre futebol, as senhoras e jovens em confidências sobre os seus difíceis amores.
Com o valor da indemnização pelo despedimento poder-se-ia manter algum tempo, mas foi pensando que teria de contar à mulher, sobretudo quando contemplava nos extractos da conta, os débitos das compras.
Como chegava um pouco mais cedo a casa, foi-se apercebendo de como raramente conversavam. Mesmo antes, as suas conversas reduziram-se a combinações sobre jantares de trabalho e os planos de férias dela – ele preferia ficar a trabalhar. Ela falava-lhe das suas aquisições e ele pouco ouvia. Agora, quando voltava para casa, parecia-lhe que ela o evitava, como querendo adiar qualquer explicação para a mudança de horário.
Até que um dia não pode esperar mais, e contou tudo à mulher que ficou muito calada, a ver a sua vida a andar para trás. Naquela noite, ela não lhe disse nada. No dia seguinte, ela esperou pela noite para lhe anunciar que queria o divórcio e saiu ela de casa, com as malas que tinha já arranjadas quando ele chegou. Soube pouco depois que tinha ido para casa do Raul, com quem a seguir casou, continuando alegremente a gastar o dinheiro do marido, apenas agora com um marido diferente.
Consciente de como estavam afastados, não se conseguindo lembrar se alguma vez teriam estado apaixonados, não lhe custou a separação. Compensava o silêncio em casa com os novos amigos no café. Ofereceu-se para ajudar quem precisasse com as contas e começou a gostar de ter tempo para ouvir os outros e ouvir-se a si próprio.
Depois, juntou-se com a Dores, passou a ajudá-la no café, e tiveram um miúdo.
Ganhou um novo vício, o vício de viver.

Um dia de loucos


Chovia e trovejava, o vento a assobiar, abanava as paredes da velha casa e levava a que as portas se abrissem ou a fechassem com estrondo. Rafael saiu levemente contrariado por deixar a mulher Anita sozinha. Estava no final de uma gravidez complicada, com o corpo magro deformado pela grande barriga. Sabia que era injusto, mas ressentia-se daquela criatura que parecia sugar-lhe toda a energia e vida.
Cá fora, o carro não pegou logo. Qualquer dia teria de lhe mudar a bateria. Teve de ligar as luzes porque estava ainda muito escuro. Nas ruas viu o resultado do temporal nas árvores despidas e nas folhas e ramos caídos. Alguns peões lutavam em vão contra os guarda-chuvas virados pelo vento.
Durante a manhã distraiu-se com o trabalho, mas antes da hora do almoço recebeu uma chamada inesperada de casa. Apesar de ainda faltarem quinze dias para a data prevista, tinha chegado a hora. Saiu disparado. Só encontrava condutores lentos à sua frente. Ele que nunca buzinava, fê-lo várias vezes. Quando chegou, a Anita estava à sua espera, sentada no banco da entrada, o rosto muito branco. Lembrou-o para ir buscar a mala preparada com antecedência. Ajudou-a a sentar-se no banco a seu lado no carro e a colocar o cinto sobre a enorme barriga, e iniciaram o caminho para o hospital. Ficava perto, mas parecia que nunca mais chegavam. Enervou-se e não buzinou porque queria dar a ideia à Anita que estava tudo controlado, mas quando ela começou com contracções quase perdia a cabeça. Foi então que o carro foi abaixo. O problema poderia não ser afinal a bateria, e parecia não haver forma de voltar a pegar. Saiu para a rua exasperado. Felizmente parou uma carrinha de caixa aberta. Aceitaram levá-los. A Anita, foi à frente, entre o condutor e a mulher deste. Ele veio atrás, à chuva, agarrado à mala e a segurar-se meio de lado, até que chegaram. Quase a carregou juntamente com a mala pelas urgências dentro. Porque era um Hospital pequeno ou porque o temporal levara a que grande parte dos habituais pacientes ficasse em casa, estava quase vazia. Levaram a Anita para dentro numa maca. Ficou à espera, a sentir-se molhado e só, enquanto a preparavam. O bebé estava atravessado, não tinha completado a volta e ela não estava a fazer a dilatação. A obstetra optou pela cesariana. Até a levarem para a sala foi mais uma eternidade, não sabia o que lhe dizer. Via que ela estava com dores e com medo. Só lhe soube dizer que a amava.
Cerca de meia hora depois vieram dizer-lhe que era pai. Quis ver primeiro a Anita. Ainda sobre o efeito da anestesia, descansava finalmente. Parecia muito jovem e feliz. Depois levaram-no a ver o bebé. Já limpo e embrulhado num lençol azul. Pareceu‑lhe um bebé igual a tantos outros. Sentou-se ao pé do seu berço, estendeu a sua mão até à mão minúscula do bebé que agarrou um dos seus dedos.
Nessa altura percebeu que nada a partir dali seria igual porque naquele dia de loucos tinha nascido o seu filho.

A despedida


  

No seu tempo, Joaquim deu o salto. Ainda não tinha vinte anos, deixara a escola com dez e a quarta classe antiga. Trabalhou na terra ao lado do pai o suficiente para aceitar que assim mal sobreviviam. Tinha por lá um primo mais velho, o Zé, que mal conhecia, mas era uma referência. Seguiu de boleia até à fronteira e pagou depois a passagem. 
Primeiro foi trabalhar para as obras, um trabalho que lhe arranjou o Zé. Ficou alojado com outros portugueses num bairro de contentores e vinham buscá-los numa carrinha que os levava para a obra. Levantavam-se de noite e quando regressavam já era noite de novo. Passou muito frio e foi difícil. Sentia falta da família, não percebia a língua e não gostava da comida.  Esteve ilegal até conseguir um contrato de trabalho assinado. Com o tempo foi-se habituando, era esforçado e os patrões gostavam dele. Subiu até encarregado. 
Numas férias na terra acertou o casamento com a Maria. As famílias eram vizinhas, tinham a mesma idade e andaram na escola juntos. Conheciam-se bem e confiavam um no outro. Casaram pouco depois e tiveram só um filho, o Pedro. Quando o miúdo nasceu, estava ele lá fora, a trabalhar. Só soube à noite, quando lhe ligaram.Faziam-no para uma venda de um português, o Sr. Manuel, onde ele costumava passar ao sábado para beber um copo, e aquele guardava-lhe os recados.  Primeiro assustou-se, pensou no pior, não  lhe ocorreu que fosse pelo filho porque faltava ainda quase um mês. Ficou depois estarrecido, era pai, mas o seu filho estava longe e ia demorar até o poder ver. Pagou uns copos para celebrar, bebeu também só um pouco mais que o costume, ciente da responsabilidade que o esperava. Quando finalmente viu o filho já ele tinha dois meses. Achou-o parecido com a mãe e gostou dele, o seu filho.
Quando o miúdo tinha dez anos, regressou de vez. O que tinha poupado deu-lhe para comprar a casa, com a venda por baixo. Esses foram os melhores anos da sua vida. Os pais ainda estavam vivos. O dinheiro ia dando para as despesas. Estava com a sua Maria, viam o filho a crescer. 
Quando o Pedro tinha doze anos foi para o liceu na cidade mais próxima. Já só vinha a casa ao fim-de-semana. Nessas alturas e nas férias, ajudava os pais na loja. Um bom rapaz, que nunca lhes deu problemas. Ele e a Maria queriam que o filho tivesse um curso que seria uma enxada para a vida, queriam que fosse para médico. Por as médias estarem tão altas, entrou em enfermagem. Disse-lhes que até gostava mais, era a sua vocação.  
Entretanto, a aldeia ia ficando mais vazia e o negócio mais fraco. Os seus clientes eram cada vez mais velhos, mais ainda do que ele. Os jovens iam para a cidade ou emigravam. Fechavam-se as casas, que às vezes já só abriam no Verão, outras permaneciam como abandonadas. O negócio ia rendendo menos. Vendeu a terra herdada do pai para continuar a pagar os estudos do filho. 
Um dos melhores dias da sua vida foi quando o filho terminou o curso. Sentia um orgulho que não lhe cabia no peito. Só falava disso na loja, os vizinhos e clientes até já brincavam com ele. 
Depois, o tempo foi passando. O Pedro tentava, mas não conseguia emprego. Foi alargando a procura, mas nada. A enxada revelava-se afinal inútil. 
E um dia o filho veio ter com ele para a conversa que não pensara que fossem ter. Conseguira um emprego, mas lá fora. A história repetia-se. Pensou que pelo menos o seu filho partia com melhores condições. Já de contrato assinado, bilhete de avião na Ryanair. 
Numa viagem de duas horas de carro, ele e a Maria, acompanharam-no ao aeroporto. Durante a viagem pouco falou. A mulher queria confirmar com o filho que não se esquecera de nada e o Pedro queria tranquilizá-los. O voo era de noite. 
Tudo lhes parecia muito confuso, e demasiado rápido. Num momento, o filho estava com eles. No seguinte já partira. Ficaram, ele e a Maria, com a casa vazia e de coração apertado.
            Ei-los que partem!




A mulher do próximo

A  mulher do próximo



Acredita que nunca irá esquecer a primeira vez que a viu.
Tinha saído à noite com um amigo, o Carlos que se tinha separado e andava meio abatido. Depois do jantar decidiram passar por um pequeno bar perto. Era quase meia-noite quando chegaram. Lá dentro, estava quase tão escuro como na rua. Pequenos candeeiros iluminavam parcamente as mesas com luzes avermelhadas. No interior encontravam-se sobretudo casais, e com aquela luz, imaginou-os, envolvidos em ligações ilícitas. Talvez fosse por influência dos desabafos do Carlos. A mulher tinha-o deixado por outro. Ele já andava meio desconfiado que ela o enganava, mas quando a confrontou, ela assumiu tudo e saiu de casa. Ouvir o Carlos, fê-lo ver assim nos casais em redor, homens e mulheres comprometidos envolvidos em traições. Atrás de si no entanto estava uma mesa diferente. Cinco mulheres, mais raparigas, numa despedida de solteira. Foi fácil percebê-lo. A noiva alourada tinha um pequeno véu branco. Ouvi-las em brindes e risos foi o que o fez virar-se e olhar para trás, mas não foi a noiva que chamou a sua atenção, e sim uma das amigas, de cabelo escuro, olhos brilhantes e um sorriso como sonhava encontrar, sincero e feliz, que nos dava vontade de lhe corresponder e sorrir-lhe também. Ela viu-o, sorriu-lhe, e ele correspondeu. Para espanto do amigo, levantou-se e foi até à mesa delas. Sou o Daniel e o meu amigo ali - apontou para o Carlos - faz strip de graça. Já todos tinham bebido além da conta o que ajudou na conversa. Ela disse-lhe que se chamava Bia. Juntaram-se os dois ao grupo. O Carlos inicialmente chocado pelo modo como fora apresentado, pareceu pela primeira vez ter deixado de pensar na "ex", pelo menos deixou de falar nela, muito entretido com a noiva e as amigas. A certa altura elas tinham mesmo de ir embora. A Bia disse-lhe que tinha regressado há pouco ao país, estava a tratar de arranjar um apartamento e novo número de telemóvel Por isso foi ele que lhe deu o seu número, certo de que ela iria ligar-lhe para que saíssem os dois. No entanto, ela não o fez. Nem no dia seguinte, nem uma semana depois. Não a esqueceu, embora pensasse que ela o tinha esquecido.
No mês seguinte ia ter a oportunidade de finalmente conhecer a mulher do melhor amigo. Há dois anos que o Filipe fora trabalhar para Londres, e lá conheceu uma portuguesa e estudar no Erasmus, a Beatriz. Ouvira falar tanto nela que quase lhe parecia que já a conhecia. A Beatriz era bonita, elegante, simpática, inteligente, e conquistara o Filipe. Os dois tinham casado por lá, mas agora estavam de regresso. Combinaram um jantar na casa deles na sexta-feira. 
Chegou atrasado quinze minutos, por causa do trânsito. Foi o Filipe que veio abrir a porta. Lá dentro já estariam todos, cerca de dez ou doze amigos, velhos conhecidos, para um jantar buffet e para conhecerem a Beatriz. O Filipe chamou-a, ela veio da cozinha com um prato de entradas. Ele viu-a primeiro e felizmente o Filipe estava a olhar para a mulher e não se apercebeu da sua surpresa e choque. O cabelo castanho, os olhos brilhantes, não estava a sorrir, mas era a Bia. O Filipe apresentou-os. Sentiu-se esmagado com a capacidade dela para fingir que não se conheciam. Parecia vagamente aborrecida, sem o sorriso sincero que o atraíra. O Filipe explicou que ela estava meio adoentada. Foi dos piores jantares em que esteve, Por um lado, continuava a achá-la atraente, a procurar nela, em vão, algum sinal de reconhecimento e o sorriso. Por outro lado, ao saber que era a mulher do Filipe, tinha-se tornado para sempre proibida, não podia sequer ter alguma esperança de a conquistar. Ia ter de evitá-la, evitar também o Filipe, invejá-lo por ser o marido dela, lamentá-lo por ignorar que a mulher semanas antes andara a flertar com um homem que agora fingia nem conhecer ou que teria já esquecido. Será que ela já nem se lembrava dele? Por isso é que não lhe ligara. Se calhar tinha-se divertido com o que se passara e nunca esperara voltar a encontrá-lo.
Nesse sábado decidiu voltar ao Bar onde se tinham conhecido. Foi lá sozinho, sem saber bem porquê ou o que esperava encontrar. Lá dentro, as mesmas meias luzes avermelhadas, os mesmos parezinhos. Pediu uma bebida ao balcão e foi então que a ouviu. "Daniel". Virou-se e era a Bia, a sorrir-lhe com o sorriso que o conquistara. Levantou-se. Ela aproximou-se. "Perdi o teu número, voltei aqui na esperança de te encontrar." Ela estava tão perto que sentia o perfume fresco do seu cabelo. Não conseguiu não corresponder ao seu sorriso, até que se lembrou que era a mulher do Filipe. Deixou de sorrir. Afastou-se. Ela apercebeu-se da diferença nele e deixou de sorrir também. Por um instante, ele pensou em ir embora, ter alguma tirada radical que agora a olhar para trás lhe pareceria sobretudo ridícula, como "tu és casada, deverias ter vergonha" e "entre nós nunca vai haver nada". Mas não foi capaz. Decidiu naquele momento que mesmo sendo amigo do Filipe, não podia sair e deixar a Bia.  Mais do que a mulher do próximo, era a mulher do seu amigo, mas ele queria que fosse a sua.
Conseguiu perguntar-lhe: "E o Filipe, Beatriz?"
Primeiro ela pareceu não o entender, mas depois voltou a sorrir. "O Filipe é o meu cunhado e a Beatriz é a minha irmã gémea.

E desde então, nunca mais se largaram.

Primeiro Amor

Primeiro Amor

Com dezassete anos Anya já sabia que não existia o amor. Não passava de uma invenção para seduzir mulheres ingénuas e vender livros de romances. Existia a paixão e a amizade, e um jogo de sedutores e iludidos, em que apesar de toda a evolução nos costumes, os homens queriam acumular conquistas e as mulheres arranjar um marido.
Tinha planeado o seu futuro, continuar os estudos, licenciar-se, começar a trabalhar, ser independente, ter bons amigos e viajar. Não pensava constituir família, talvez um dia ter um filho, um marido definitivamente, não.
A sua forma esclarecida de pensar adviera-lhe dos livros que sempre encontrara acessíveis e sem censura, em casa e nas bibliotecas.
No entanto, nos últimos tempos, começara a sentir-se ultrapassada por algumas colegas. As mesmas que olhava antes com alguma superioridade porque se envolviam em namoricos dizendo-se apaixonadas. De repente, essas colegas tinham experimentado na prática aquilo que ela apenas conhecia dos livros e Anya detestava essa sensação de estar a ficar para trás, de ignorar o que para as outras era básico. Foi por isso que decidiu passar também pela prática, ter uma experiência que lhe desse esse conhecimento e deixar a questão arrumada.
Sabia que era bonita e desejável pelos piropos e olhares com que apanhava desde os onze anos, ainda nem tinha peito. Clara de pele, olhos e cabelos castanhos, feições correctas, alta para a média, e magra.
Não queria escolher um dos homens mais velhos que paravam para a olhar, pareciam-lhe vagamente repulsivos e assustadores. Queria uma situação que pudesse controlar, ter o comportamento que  muitos consideravam próprio do género masculino, ter uma única experiência, sem ligações emocionais e sem repetições.
Lembrou-se de um colega do liceu, o Filipe. Era dos bons alunos, bom também no desporto, mas não dos extrovertidos e populares, antes alguém que aqueles incluíam no seu grupo e respeitavam.
Nunca tinham trocado uma palavra. Se com os outros já não falava muito, com ela parecia não ser capaz de dizer nada. Uma vez, num intervalo sentara-se mesmo ao seu lado, quando muitos outros lugares estavam livres. O que confirmou o que ela suspeitava. A sua incapacidade de falar com ela, o ter-se vindo sentar ao seu lado, sucediam porque a achava gira.  
Planeou todos os detalhes. Um dia em que apenas tinham aulas de manhã, interpelou-o quando saíam da escola. Perguntou-lhe se não queria estudar com ela para um teste. Ele aderiu logo. Tinha olhos azuis escuros e era alto. Olhá-lo, descobrir a cor dos olhos dele em que antes não reparara - tinha pensado que eram castanhos - fez com que se sentisse um pouco insegura, mas disfarçou. Tudo começava a parecer muito real.
Combinaram ir para casa dele porque morava perto.
Para se manter no controle da situação, foi conversando com ele sobre a matéria que tinham de estudar. Quando o interpelava, também ele parecia levemente nervoso, mas respondia-lhe de forma assertiva, mostrando que dominava a matéria. Devia estar convencido que o que ela queria era mesmo estudar, preparar-se para o teste.
Chegaram rapidamente a casa dos pais dele, ele morava mesmo perto, a poucos metros da escola. Uma casa bonita, com gradeamento e jardim. Ele abriu o portão e depois a porta, explicou-lhe que os pais apenas voltavam ao final do dia e  iria só dizer à empregada que tinha chegado. Ela pensou, caramba deves ser rico, ou antes, os teus pais, com esta casa e empregada, mas que não deixaria que isso a intimidasse.
Ele perguntou-lhe se iria querer comer alguma coisa, disse-lhe que poderiam ir para a sala, e ela interrompeu-o para lhe dizer que preferia o quarto, para não serem interrompidos.
Subiram as escadas, e entraram no quarto dele.
Surpreendeu-a que estivesse bem arrumado. Havia só alguma roupa sobre a cama e ele corou e enfiou-a num armário. Tinha uma secretária e uma estante com livros, mas ela sentou-se na cama. A persiana estava meio descida como protecção do sol do início da tarde. Ela tinha um vestido curto e sentiu a frieza da colcha nas pernas quentes do sol lá fora. Olhou para ele, Parecia mais alto por estar de pé, tão perto, com ela sentada. Fez-lhe um gesto para que se sentasse ao seu lado, e ele fê-lo.
Parecia-lhe meio espantado. De novo, ele ficou em silêncio, não saberia o que dizer. Anya também não sabia muito bem o que fazer ou dizer. Estavam muito perto. Sentia o calor que vinha do corpo dele, o cheio de transpiração num corpo limpo. Resolveu beijá-lo, torcendo para que ele não se desviasse ou chocassem. Foi-se aproximando, olhando-o nos olhos e só fechou os seus segundos antes dos seus lábios tocarem nos dele. Eram macios e quentes e o seu hálito sabia a morango de pastilha elástica. Anya pensou se os seus saberiam à sandes de fiambre e à maça que tinham sido o seu almoço. Foi o seu primeiro beijo na boca.
Voltou a olhá-lo nos olhos, parecia agradado com o que estavam a fazer, interrogou-se sobre ele teria correspondido ao seu beijo, quando ele tomou a iniciativa e a beijou, e entreabriu os lábios. Beijar assim até era bom.
Parou-o para tirar o seu vestido pela cabeça, ficando de sutiã e calcinhas rosa, escolhidos de propósito para a ocasião. Olhou-o em desafio e ele rapidamente tirou a tshirt, parecendo nunca ter deixado de a olhar enquanto o fazia.
Era mais branco do que pensara, nos braços notava-se os músculos e a marca do sol até à manga curta, delineava-lhe o torso. Apesar do calor lá fora, no quarto estava fresco e procurou abrigo no aconchego quente dos seus braços. Sentia-se dividida em duas, uma beijava, era beijada, abraçada, tocada e tocava, a outra como que observada o que se passava e pensava, será que é assim, será que é agora. Ele não conseguia abrir‑lhe o sutiã e foi ela que o fez, ele tirou as calças de ganga e ficou de boxers, tinha pernas fortes e com pêlos louros.
A parte dela que observava e pensava no que estava a fazer, perguntou-lhe "tens um preservativo?" Ele pareceu meio perdido, mas depois respondeu-lhe "no quarto do meu irmão". Anya nem sabia que ele tinha um irmão.
O Filipe levantou-se e voltou num instante. Com ele ainda de pé, ela lembrou-se de lhe pedir também uma toalha, não queria sujar a cama se sangrasse, mas quando  lhe disse para que era a toalha, ele ficou de repente muito sério.
Virou-se de costas e quando de novo se virou para ela, parecia decidido e um pouco aborrecido "a nossa primeira vez não pode ser assim".
Que nossa? foi o que pensou responder-lhe.
De repente ficou muito zangada e só um pouco aliviada. O idiota estava a desprezá-la, a acabar com o seu plano. Apertou o sutiã, vestiu o vestido, agarrou na carteira, e enquanto calçava as sandálias, e se dirigia para a porta, gritou-lhe: " a minha primeira vez não será contigo, mas com outro, idiota" e teve o prazer de o ver tropeçar nas calças de ganga que estava a enfiar, antes de sair a correr.
Depois, teve sorte, ao chegar à paragem, vinha o seu autocarro, apanhou-o e não olhou para a retaguarda para saber se ele viria ou não atrás dela.
No dia seguinte, a turma dele só teria uma aula com a dela, no final da manhã.
No terceiro período foi falar com a professora, disse-lhe que lhe doía a barriga.
Era boa aluna, das bem comportadas, que nunca faltava, e a professora deixou-a sair mais cedo. Foi-se embora rapidamente, apenas um pouco curiosa sobre se ele viria procurá-la.
Meteu-se o fim-de-semana, e na segunda-feira quando chegou a aula, duas amigas vieram ter com ela, e disse-lhe a Emília "Olha o Filipe veio à tua procura na sexta e ficou zangado quando soube que tinhas saído mais cedo, o que é que lhe fizeste?". "Nada", respondeu, não lhe fiz nada, mas atrás das amigas apareceu o Filipe e com ar zangado de quem seria capaz de carregá-la, se se recusasse a ir com ele, "Temos de conversar, tu e eu".
Consentiu e resolveu segui-lo para pôr um ponto final naquela história.
Vieram cá para fora, atrás do pavilhão principal, num lugar mais escondido. Ele parecia tão zangado que até pensou se iria bater-lhe, aproximou-se e obrigou-a a olhar da baixo para cima, olhos nos olhos, e então aproximou-se ainda mais e, em vez de lhe bater, beijou-a.
Ela sentiu de novo o calor do seu corpo, o seu cheiro, o gosto da morango do seu beijo. Fechou os olhos e percebeu que sentira falta dele e naquele instante a que estava de lado a observar fundiu-se na que sentia. Quando voltou a abrir os olhos, ele já não parecia zangado e ela de alguma forma tinha perdido o controle da situação. Ele disse‑lhe: "agora és a minha namorada" e voltaram os dois de mãos dadas para a sala.