segunda-feira, 25 de julho de 2016

Um dia de loucos


Chovia e trovejava, o vento a assobiar, abanava as paredes da velha casa e levava a que as portas se abrissem ou a fechassem com estrondo. Rafael saiu levemente contrariado por deixar a mulher Anita sozinha. Estava no final de uma gravidez complicada, com o corpo magro deformado pela grande barriga. Sabia que era injusto, mas ressentia-se daquela criatura que parecia sugar-lhe toda a energia e vida.
Cá fora, o carro não pegou logo. Qualquer dia teria de lhe mudar a bateria. Teve de ligar as luzes porque estava ainda muito escuro. Nas ruas viu o resultado do temporal nas árvores despidas e nas folhas e ramos caídos. Alguns peões lutavam em vão contra os guarda-chuvas virados pelo vento.
Durante a manhã distraiu-se com o trabalho, mas antes da hora do almoço recebeu uma chamada inesperada de casa. Apesar de ainda faltarem quinze dias para a data prevista, tinha chegado a hora. Saiu disparado. Só encontrava condutores lentos à sua frente. Ele que nunca buzinava, fê-lo várias vezes. Quando chegou, a Anita estava à sua espera, sentada no banco da entrada, o rosto muito branco. Lembrou-o para ir buscar a mala preparada com antecedência. Ajudou-a a sentar-se no banco a seu lado no carro e a colocar o cinto sobre a enorme barriga, e iniciaram o caminho para o hospital. Ficava perto, mas parecia que nunca mais chegavam. Enervou-se e não buzinou porque queria dar a ideia à Anita que estava tudo controlado, mas quando ela começou com contracções quase perdia a cabeça. Foi então que o carro foi abaixo. O problema poderia não ser afinal a bateria, e parecia não haver forma de voltar a pegar. Saiu para a rua exasperado. Felizmente parou uma carrinha de caixa aberta. Aceitaram levá-los. A Anita, foi à frente, entre o condutor e a mulher deste. Ele veio atrás, à chuva, agarrado à mala e a segurar-se meio de lado, até que chegaram. Quase a carregou juntamente com a mala pelas urgências dentro. Porque era um Hospital pequeno ou porque o temporal levara a que grande parte dos habituais pacientes ficasse em casa, estava quase vazia. Levaram a Anita para dentro numa maca. Ficou à espera, a sentir-se molhado e só, enquanto a preparavam. O bebé estava atravessado, não tinha completado a volta e ela não estava a fazer a dilatação. A obstetra optou pela cesariana. Até a levarem para a sala foi mais uma eternidade, não sabia o que lhe dizer. Via que ela estava com dores e com medo. Só lhe soube dizer que a amava.
Cerca de meia hora depois vieram dizer-lhe que era pai. Quis ver primeiro a Anita. Ainda sobre o efeito da anestesia, descansava finalmente. Parecia muito jovem e feliz. Depois levaram-no a ver o bebé. Já limpo e embrulhado num lençol azul. Pareceu‑lhe um bebé igual a tantos outros. Sentou-se ao pé do seu berço, estendeu a sua mão até à mão minúscula do bebé que agarrou um dos seus dedos.
Nessa altura percebeu que nada a partir dali seria igual porque naquele dia de loucos tinha nascido o seu filho.

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