O anel no anelar tinha criado um calo no início da
palma da mão, mesmo ali junto ao dedo. Esgravatava-o. Por agora nada mais podia
fazer. Os dedos não se adormeciam - tal como lhe tinham prometido em surdina.
No calo duro. Instalado. Tentava esgravatar até que lhe saísse uma réstia de
alma por ali. Pensava que assim poderia ser livre.
Tinha tentado tudo ou quase tudo, mesmo o que antes
lhe parecia impossível.
Quando sofrera o esgotamento, não suportava mais a
culpa.
Entretanto, tinha começado as consultas de apoio
terapêutico. No início, ia para lá, olhava pela janela e não fazia ideia do que
deveria falar. Apetecia-lhe às vezes só chorar. Pouco a pouco, tinha começado a
desabafar. Parecia-lhe que a sua psicóloga só a ouvia, mas as perguntas que lhe
fazia, as respostas que procurava para lhe apresentar, deixavam-na depois a
pensar.
Começava a compreender o que a tinha trazido ali.
Tinha tido uma infância e uma adolescência normais.
A menina bonita, um pouco estragada pelos pais, dada como exemplo pelos professores,
admirada e invejada pelos colegas. Licenciou-se com a nota mais alta, começou
logo a trabalhar numa das melhores empresas. Teve alguns namorados, nenhum lhe
deixou qualquer marca. Talvez não fosse capaz de se apaixonar. Um dia
aparecera-lhe o Luís. Tinha um percurso semelhante com o seu. Eram muito
parecidos, na família, formação e ambições. As suas famílias conheciam-se e
cruzavam‑se nas mesmas festas e acontecimento sociais. Também ele se tinha
licenciado com distinção, ocupava um cargo importante, e era um bom partido,
como orgulhosa partilhara com uma amiga. Tinham tido um namoro cheio de eventos
memoráveis. Ele pedira-a em casamento na passagem do ano, quando ela contava
que o fizesse, e tinham casado algum tempo depois, numa festa que fora um
acontecimento nesse ano, pelos convidados, toaletes, decoração e acepipes.
Continuou a trabalhar depois do casamento, quando engravidou e após o
nascimento. Pouco a pouco, tornava-se mais difícil conciliar tudo, o trabalho,
o casamento e maternidade. Pesava-lhe a culpa pelas ausências por razões de
trabalho, no marido só via censura. Se alguma vez tinha estado apaixonada por
ele, agora decididamente não era como se sentia. Não conseguia ter a dedicação
nem experimentar o amor maternal de que lhe tinham falado. Até deixou de
encontrar satisfação no trabalho. Depois houve o trágico acidente com o avião
que era suposto apanhar. Se não se tivesse atrasado teria morrido. Foi-se
abaixo. Entupiu-se de antidepressivos e ansiolíticos. Fechou-se em casa. Sentia
que tinha falhado em tudo. Passou por um período bem negro até começar a sentir
alguma esperança. Tinham contratado uma ama para o filho e passou a ir às
consultas. Pela primeira vez a questionar-se sobre quem era e sobre o que
realmente queria, compreendeu que o retomar a vida com o Luís era mais uma vez
agir conforme o que era esperado dela. E não era o que queria. Da mesma forma
que o seu corpo rejeitava a aliança, o calo formado na palma da mão que não
esquecia, simbolizava o que não queria, aquele casamento que a prendia. Queria
ser livre.
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