domingo, 24 de julho de 2016

5/8 O Anel

O anel no anelar tinha criado um calo no início da palma da mão, mesmo ali junto ao dedo. Esgravatava-o. Por agora nada mais podia fazer. Os dedos não se adormeciam - tal como lhe tinham prometido em surdina. No calo duro. Instalado. Tentava esgravatar até que lhe saísse uma réstia de alma por ali. Pensava que assim poderia ser livre.
Tinha tentado tudo ou quase tudo, mesmo o que antes lhe parecia impossível.
Quando sofrera o esgotamento, não suportava mais a culpa.
Entretanto, tinha começado as consultas de apoio terapêutico. No início, ia para lá, olhava pela janela e não fazia ideia do que deveria falar. Apetecia-lhe às vezes só chorar. Pouco a pouco, tinha começado a desabafar. Parecia-lhe que a sua psicóloga só a ouvia, mas as perguntas que lhe fazia, as respostas que procurava para lhe apresentar, deixavam-na depois a pensar.
Começava a compreender o que a tinha trazido ali.

Tinha tido uma infância e uma adolescência normais. A menina bonita, um pouco estragada pelos pais, dada como exemplo pelos professores, admirada e invejada pelos colegas. Licenciou-se com a nota mais alta, começou logo a trabalhar numa das melhores empresas. Teve alguns namorados, nenhum lhe deixou qualquer marca. Talvez não fosse capaz de se apaixonar. Um dia aparecera-lhe o Luís. Tinha um percurso semelhante com o seu. Eram muito parecidos, na família, formação e ambições. As suas famílias conheciam-se e cruzavam‑se nas mesmas festas e acontecimento sociais. Também ele se tinha licenciado com distinção, ocupava um cargo importante, e era um bom partido, como orgulhosa partilhara com uma amiga. Tinham tido um namoro cheio de eventos memoráveis. Ele pedira-a em casamento na passagem do ano, quando ela contava que o fizesse, e tinham casado algum tempo depois, numa festa que fora um acontecimento nesse ano, pelos convidados, toaletes, decoração e acepipes. Continuou a trabalhar depois do casamento, quando engravidou e após o nascimento. Pouco a pouco, tornava-se mais difícil conciliar tudo, o trabalho, o casamento e maternidade. Pesava-lhe a culpa pelas ausências por razões de trabalho, no marido só via censura. Se alguma vez tinha estado apaixonada por ele, agora decididamente não era como se sentia. Não conseguia ter a dedicação nem experimentar o amor maternal de que lhe tinham falado. Até deixou de encontrar satisfação no trabalho. Depois houve o trágico acidente com o avião que era suposto apanhar. Se não se tivesse atrasado teria morrido. Foi-se abaixo. Entupiu-se de antidepressivos e ansiolíticos. Fechou-se em casa. Sentia que tinha falhado em tudo. Passou por um período bem negro até começar a sentir alguma esperança. Tinham contratado uma ama para o filho e passou a ir às consultas. Pela primeira vez a questionar-se sobre quem era e sobre o que realmente queria, compreendeu que o retomar a vida com o Luís era mais uma vez agir conforme o que era esperado dela. E não era o que queria. Da mesma forma que o seu corpo rejeitava a aliança, o calo formado na palma da mão que não esquecia, simbolizava o que não queria, aquele casamento que a prendia. Queria ser livre.

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