Amor cego
Ela era a
menina bonita que preferia ficar em casa.
No seu lar
estavam a avó, a mãe, as quatro tias e cinco irmãs mais velhas, Inês, Elisa,
Isabel, Gracinda e Helena. Todas com o primeiro nome Maria, ela também, Maria
da Luz, a Luzinha.
O pai
emigrara para a Suíça. Voltava no Natal e nas férias. Magro e baixinho, parecia
um pouco perdido entre tantas mulheres, meio espantado em reencontrar as
filhas, que nasciam e cresciam entre as suas visitas, todas nascidas em Maio,
excepto ela, que nasceu em Setembro.
As irmãs
eram namoradeiras e gostavam de sair, um pouco preocupadas com a ideia de
ficarem para tias, como tinha acontecido com as irmãs da mãe. Não que estas se
queixassem, mais do que tias, realizaram-se na maternidade com as sobrinhas. A
mãe preferia a filha mais-velha, cada uma das tias preferia depois pela ordem
as suas irmãs. Para si, já não tinha sobrado uma tia, mas encontrava
carinho em todas.
As irmãs
foram assentando com o eleito dos namorados, em casamentos de Agosto.
O pai cada
vez mais magro, gastava o subsídio de férias na festa. Levava sucessivamente as
filhas de branco pela Igreja enfeitada de flores até ao nervoso futuro genro no
fato de Domingo.
Até que
chegou um dia que só sobrava ela.
As irmãs
casadas, com novos lares em aldeias vizinhas, já com filhos, os seus sobrinhos,
e ela a chegar aos vinte e dois, solteira.
No círculo
de mulheres, avó, mãe, tias e irmãs, decidiram que ela também tinha de arranjar
um marido, ter a sua casa e filhos.
Contudo, nem
na sua aldeia, nem nas que ficavam em redor, restavam moços casadoiros.
A avó, mãe e
tias não conseguiam recordar-se de um primo solteiro e bom rapaz. As irmãs
também ninguém lembravam, entre antigos pretendentes ou familiares e amigos dos
maridos. Parecia que uma sombra levara todos os homens sozinhos e deixara
apenas casais muito ou pouco felizes.
Lembrou-se
então uma das tias em que recorressem ao pai. Talvez tivesse um colega de
trabalho, de preferência português, que quisesse constituir família. Por sorte,
surgiu-lhes a grande ideia no Natal e aproveitaram a sua vinda para lhe
comunicarem a sua nova missão. Tinha de encontrar marido para a última filha
solteira.
Não pareceu
o pai muito entusiasmado com o projecto, nem se lembrou naquela altura de
ninguém.
Voltou para
a Suíça e a partir dai, em cada carta ou telefonema lhe perguntavam se já tinha
encontrado o interessado.
Perto de
Agosto, talvez preocupado com o cerco que o aguardava, encontrou finalmente um
pretendente.
O Pedro,
filho do empreiteiro que o contratara, vinte e oito anos, passara por um
desgosto com uma suíça que o deixou por outro. Bom rapaz, com o liceu completo
e a assumir o negócio do pai.
Levou-lhe o
pai uma fotografia da Maria da Luz, a da comunhão solene, e tinha concordado
com este, que a filha era bonita. Não trouxe depois o pai fotografia dele, mas
começaram a trocar cartas.
Luzinha
escrevia as suas, bem compenetrada da sua importância. Pedia conselho às irmãs,
escrevia primeiro o rascunho, passava depois para o papel de carta, com a letra
bem desenhada. Escrevia sobre a vida na aldeia, os afazeres na casa, as
criancices dos sobrinhos.
As cartas
dele eram mais raras, mas eram lindas. Ele escrevia sobre sentimentos como um
poeta. Parecia-lhe que lia um livro, embora não ficasse a saber muito, aliás pensando
bem, não ficava a saber nada em concreto, sobre ele. Mas, se lhe respondia,
deveria ser porque gostava realmente dela, como declamava nos seus
escritos.
Começou a
imaginá-lo. Deveria ser alto e moreno como o herói na gravura de um dos seus livros
de romance e como acreditava que o seu nome sugeria. Sensível e culto (afinal
tinha o liceu completo) como as suas cartas revelavam.
Os meses
foram passando e sem saber como ou quando, apaixonou-se pelo Pedro que
imaginava e nunca tinha visto, nem sequer em fotografia.
Já com vinte e três anos, a aproximar-se o
Natal, decidiram mãe, avó e tias que o pai tinha de o trazer nesta
visita.
E que prova
de amor da parte dele, passar o Natal longe da família para conhecer a futura
noiva. Olívia até emagreceu com a ânsia que o tempo passasse para poder
finalmente encontrar-se com o Pedro.
Pelo Natal e
como de costume, o pai só podia vir uns dias, aproveitando o fim‑de-semana e o
feriado.
Viria de
carro com um amigo da sua idade de aldeia vizinha e o Pedro.
Ela, a mãe e
as tias passaram o dia a arrumar a casa, a arranjar o quarto onde o Pedro ia
ficar, sob a direcção atenta da avó.
Era já
noitinha quando na aldeia sossegada, ladraram os cães a anunciar que chegavam.
Maria da Luz,
não sabia se devia correr para a porta, como antes sempre fazia quando o pai
chegava, ou aguardar na sala que entrassem. Decidiu ir para a porta quando já
lhes ouvia as vozes. Atrás da avó, da mãe e das tias, viu primeiro o pai e ao
lado deste, um rapaz alourado, gorducho e baixinho, em vez do Pedro. Só que...como
compreendeu logo depois, era o Pedro.
Não queria
mostrar a sua decepção, mas queria esconder-se no seu quarto. Abraçou o pai
como de costume, cumprimentou o Pedro. Este foi logo cercado pelas mulheres da
família. Não lhes deixaram, felizmente, espaço ou tempo para conversarem.
Foram todos
para a cozinha, onde a avó lhes trouxe de cear, pão, queijo e vinho.
E pouco
tempo depois, que lhe pareceu a ela uma eternidade, foram-se deitar.
Durante a
noite sonhou que o Pedro moreno se afogava. Acordou sobressaltada, ainda o sol
não nascera e com sede.
Levantou-se
para ir buscar água, não quis acender nenhum candeeiro e levou uma vela. Mais
do que em qualquer outro dia reparou nas estranhas sombras que a vela descobria
nas paredes e móvel do corredor.
Só ao chegar
à cozinha, percebeu que já lá estava alguém, sentado à mesa.
Era o Pedro,
levantara-se com fome, a pensar no pão e queijo e talvez também no vinho, que
no Inverno aquecia.
Ele olhou
para ela, apanhado com a boca cheia, engoliu, sorriu e disse-lhe baixinho,
"estava com fome, Luzinha". E talvez por pensar que a ideia dela
fosse a mesma, ofereceu-lhe do pão que partira e a fatia de queijo que
cortara.
Maria da Luz
pensou que a voz deste Pedro era mais bonita que a voz do Pedro que imaginara.
Parecia-lhe sobretudo, real.
Sem fome,
aceitou e comeu o pão e queijo. Conversaram sobre a viagem e sobre a
aldeia.
Quando
finalmente se foi deitar, não sonhou mais com o Pedro moreno e dormiu com os
anjos.
Nos três
dias que se seguiram, entre avó, mãe e tias, conseguiram conversar mais.
Ele
confessou-lhe que tinha copiado as cartas de livros e ela não se
importou.
Continuarem
a escrever-se, mas ele agora escrevia com as suas palavras, sobre a sua vida.
Mesmo sem declamação poética de sentimentos, ela adorou estas cartas. Falavam
também ao telefone sempre que podiam.
No Agosto do ano
seguinte, na Igreja enfeitada de flores, foram eles os noivos felizes antes de
partirem para a Suíça.
O que se aconteceu
depois, daria para muitas histórias, mas nenhuma como a que ela viria a contar
às sete filhas, sobre como começou a namorar com o pai delas, sem o ter visto
primeiro, e como o seu amor, de moreno e alto, passou a louro baixinho.
Nenhum comentário:
Postar um comentário