domingo, 24 de julho de 2016

2/8 O que via

Na rua, como pedinte, andrajoso e esfarrapado, mostrava a sua solidão e pobreza, por detrás de uns óculos escuros velhos como o tempo, cego e velho como a sua idade, gelado como as pedras do chão…para quem passava, sem o ver, ele era mais um, mais um pedinte na rua…
Mas não! Ele tudo via e via o que os outros que passavam não viam, na sua pele de “actor”…”
Via a manhã nascer fria enquanto o sol não descia entre os prédios para aquecer as pedras. Embrulhava-se mais no seu casaco roto enquanto tal não sucedia.
Passavam por si os lojistas que abriam o café e a tabacaria e os fornecedores que vinham deixar bebidas e jornais.
Sentia o cheiro dos pães e bolos mal saíam do forno e da tinta das impressoras meio seca no papel.
Passavam por si apressados todos aqueles que iam para o trabalho, às vezes em curtas paragens para um café e bolo ou na compra do jornal.
Via-os a todos, mas ninguém o via.
Reparava também como não se viam uns aos outros.
Contornavam-se de forma automática em olhares rápidos definidores do outro como um estranho. Excepto nos encontros combinados, ou por sorte, ou por azar, cruzamentos breves em que depois poderiam seguir juntos.
Viu a mulher grávida com a menina que levava à escola. Naquele dia parecia menos preocupada. Talvez tivesse conseguido o trabalho de que andava à procura (tinha-a visto algumas vezes a entrar na agência de emprego). A menina era dos poucos que reparava em si. Primeiro olhara-o fixamente. Depois passou a saudá-lo com um pequenino sorriso. Terá falado à mãe dele e também a mãe passou a vê-lo. Naquele dia, a mãe parou para comprar pão, e trouxe-lhe um, ainda quente. Deixou que fosse a menina a oferecer-lhe o pão que ele agradeceu e depois comeu aos pedacinhos, aquecendo a ponta dos dedos e o coração na dádiva inesperada.
O dia continuava, com alguma acalmia antes do almoço. Chegavam até si os odores da sua preparação, refogados e grelhados. De novo o café era inundado por aqueles que almoçavam o prato do dia. O som das vozes, talheres e louça encheu o ar. Sentiu fome e fraqueza, o estomago colado às costas. Teve sorte depois porque o dono do café o deixou levar algumas sobras. De novo a acalmia. Durante a tarde, vinham alguns, poucos, tomar café ou lanchar. Escurecia. Viu a senhora de idade agarrada à bengala. Tinha vindo comprar pão, perdeu-se a conversar com uma conhecida e no regresso foi surpreendida pela escuridão dos dias pequenos. Hesitava mesmo o atravessar na passadeira. Ninguém a via. Lembrou-se ele de se aproximar e lhe oferecer o braço. “Sou grande, a mim os carros vêem-me.” O maior receio de ser atropelada ou o tê-lo visto, olhos nos olhos, fê-la confiar. Segurou-se levemente ao seu braço e em passos curtos, e devagar atravessaram. Viu-a afastar-se ao mesmo ritmo, agarrada à bengala.
Talvez amanhã também ela se encontrasse entre os que o viam.


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