Mariazinha não estava nada à espera daquilo. A dor de cabeça, a confusão.
Sentiu‑se mais assustada com a reacção dos filhos. Fizeram-lhe perguntas a que
respondeu, mas o que lhes disse não deveria ter sido a resposta certa porque
ficaram ainda mais alarmados. Ainda no dia anterior tinha saído com a filha e
as netas, e agora não se lembrava do que tinham comprado. Seriam prendas para
as meninas? Mas que prendas? E de repente, já só se lembrava do nome da neta mais
velha, da Paulinha, e não conseguia recordar o nome da mais pequenina.
Chamaram o INEM, levaram-na para o hospital. Melhorou um bocadinho.
Tiraram-lhe sangue, fizeram-lhe exames e mais perguntas. Depois o Sr. Dr.
explicou-lhe que tinha de ficar internada, só um dia ou dois, que tinha tido um
AIT ou um AVC. Tinham-lhe dado antes um comprimido que lhe deu muito sono e a
fez concordar com que o lhe diziam. Ficou ali, longe da sua casa e sem ter
levado roupa, nem avisado ninguém.
De repente, o seu mundo ficou confinado ao quarto, um retângulo com quatro
camas, quando lá chegou apenas duas ocupadas, com ela, três. Felizmente o
comprimido que lhe deu sono, ajudou-a a atravessar a noite, com os intervalos
em que a vieram picar ou medir‑lhe a tensão e ouviu ao longe gritos abafados.
As suas colegas recuperavam de cirurgias. Uma vomitou durante a noite, efeito
da anestesia. Esta era uma jovem alta e forte, muito despachada. Era a segunda
vez que era operada a um abcesso. Na primeira, não tinha tido aquela reacção
negativa à anestesia mas estava já pronta para ir embora. À outra companheira,
mais da sua idade tinham-lhe tirado um peito. Esperava para saber se iniciava
um tratamento ou se havia metástases. Não gostou muito dos enfermeiros da
noite. Poderia ser por estar meio a dormir, mas tinham-lhe parecido muito
sisudos. Talvez também estivessem com sono. Já a Srª Enfermeira do dia mostrou-me
uma jóia de rapariga. Brincava com elas, dizia-lhes que precisava das camas
livres, que tinham de comer tudo para irem embora, e que o soro era como uma
feijoada.
A partir das dez começaram as visitas, vieram vê-la os filhos, à jovem veio
vê-la a mãe, à senhora de mais idade veio de tarde o marido, também entradote.
Ela preocupou-se com os filhos, que o Zé não estivesse a prejudicar o seu
trabalho para estar ali com ela, e com quem tinha a Sofia deixado as suas netas,
quem ia busca‑las à escola, agora que não podia ir a avó.
Fizeram-lhe mais exames. Um médico diferente disse-lhe que teria tido um
AIT ligeiro, mas que por precaução iam adiar a alta para o dia seguinte.
Foram-se embora as visitas. Voltou o silêncio pesado, assinalado pelos
ruídos dos aparelhos no quarto. Custou-lhe mais esta segunda noite. Mais
habituada ao espaço ou menos sedada, sentiu os gritos muito próximos. No quarto
e além pelos corredores apenas luzes de presença a criarem estranhas sombras.
No dia seguinte, ainda pela manhã deram-lhe alta. Veio a Sofia com o marido
buscá-la e ela a sentir-se meio trôpega, de certeza, só por causa dos quase
dois dias na cama. Levaram-na de cadeira de rodas até à saída, depois
agarrou-se ao braço da filha e o genro trouxe o carro para perto. Estava
frio, mas soube-lhe bem o ar fresco e seco daquela manhã de Inverno.
Foram para casa, para a sua casa onde morava com a Sofia, o marido e as
netas.
Quando chegaram, quando se encontrou entre as suas coisas, lembrou-se das
prendas e do nome da Ritinha. As meninas vieram a correr ter com ela, já
estavam em férias da escola. Lembrou-se que tinha de ajudar na cozinha, fazer o
seu arroz doce, que logo a família iria estar reunida, estaria com os filhos, o
genro, e as netinhas, e que era Natal.
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