A chuva batia forte contra os vidros da clarabóia e
da janela. Escurecera e ninguém se admiraria que a qualquer altura
começasse a trovejar.
Em breve iria ter
início a terceira e esperava-se que a última sessão do julgamento do
homicídio, pelo colectivo. Estava para terminar já na 2ª, mas quando o
Juiz que presidia à audiência, finda a prova apresentada, se preparava
para dar a palavra para alegações, o defensor oficioso informara que o
arguido queria prestar declarações.
No início
da audiência exercera o direito de não o fazer. Permanecera em silêncio
enquanto as testemunhas primeiro da acusação e depois as abonatórias,
tinham desfilado na sala como num filme. Na audiência, familiares e
conhecidos forçados ao silêncio não se continham às vezes nas expressões
e gestos. Um jornalista do jornal local fizera raras anotações. Tudo
parecia pronto para um veredicto já anunciado nos meios de comunicação, e
apenas se conjecturava sobre a medida da pena e se haveria depois
recurso.
Marcara-se a 3ª sessão para ouvir o
arguido e para as alegações. O carro prisional já o trouxera, um pouco
atrasado como habitualmente. Tinham-se designado as 9.30 horas para o
início da audiência. Às 10.00 ficou tudo finalmente pronto. O arguido
foi introduzido na sala. O guarda de pé, encostado à parede, vigiava-o a
curta distância. Atrás do arguido, foram entrando e sentando-se os
familiares e conhecidos e o jornalista. Um tio do arguido ensaiou uma
frase de ânimo, mas um olhar para os pais da vítima fez com que ficasse
calado. Os dois advogados em lados opostos também já aguardavam, o
defensor mais jovem pensava nas alegações que deveria a seguir proferir.
O Advogado dos assistentes, pais da Miriam, exibia um semblante sério. Talvez pensasse também nas suas alegações.
Os três juízes
e o Procurador entraram por fim na sala e levantaram-se todos,
advogados, arguido e público. O Juiz Presidente disse então em voz alta
aos presentes "podem sentar-se". E todos se sentaram a seguir. Por
momentos voltou a ouvir-se apenas o barulho da chuva contra os vidros.
"Já
está a gravar?" Perguntou o Juiz Presidente à funcionária judicial que
em voz baixa respondeu que sim. "Então levante-se o arguido. Sr. José
Rocha, disse que pretendia prestar declarações, pois pode falar então".
O arguido levantou-se. Era um homem de cinquenta e cinco anos prematuramente envelhecido. Casara pela primeira vez com a Miriam muito mais jovem do que ele
e não tinham tido filhos. Tinham ficado a viver na casa dos seus pais e
lá tinham continuado depois destes morrerem, assumindo também o arguido
o negócio da mercenaria.
"Senhor doutor". Fez
uma pausa e depois continuou. "Eu ouvi o que as testemunha disseram e
estão a mentir. Ninguém estava lá, e não me podem ter visto a fazer uma
coisa que eu não fiz." Fez de novo uma pausa enquanto engolia em seco. "Eu não matei a minha mulher".
"Mas senhor José não nega que a ameaçou por diversas vezes? Interpelou-o o Juiz
Presidente. "É verdade que a ameacei, é verdade que lhe bati algumas
vezes, porque ela me enganava, como todos sabem. Mas eu sou um frouxo,
carregava esta vergonha, mas continuava com ela. Sempre tive a esperança
que se iria arrepender e ...Eu não a matei".
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