domingo, 24 de julho de 2016

Luz

Era muito tarde e tinha algum sono, mas resolvera não se ir deitar ainda. Pouco a pouco, os ruídos tinham diminuído enquanto a sua mulher e os seus filhos se deitavam. Depois das boas-noites ensonadas dos filhos e meio preocupada da mulher com o "vê lá não te deites muito tarde que amanhã tens sono!", da água a correr e risos enquanto os filhos escovavam os dentes, e das portas a fecharem-se, ficara um silêncio diferente. Eram agora outros barulhos que se faziam ouvir. Ruídos dos quais nem se apercebia durante o dia, como o do frigorífico, meio intermitente e o do ponteiro dos minutos no relógio da sala. O tempo agora era seu para fazer o que quisesse: trabalhar num processo que ainda não era urgente, ler o livro que começara há semanas para o largar quase de seguida, porque não o interessava; ou ficar simplesmente ali sentado, sem fazer nada, mas com a possibilidade de fazer o que decidisse, sem interrupções. De repente deixou de ordenar os seus pensamentos e veio-lhe à memória a Luz. Há tanto tempo que não pensava nela. Não fora o seu primeiro amor e enquanto namoraram nunca a levara muito a sério. Aborrecia-o às vezes porque não se arranjava como ele via as outras no liceu fazerem-no. Aliás, aproximara-se dela também porque estava aborrecido. Naquele ano tinha-se visto de repente sem namorada. Terminara com a anterior porque ia morar para outra região, demasiado longe para se poderem encontrar e já pouco ou nada apaixonados depois de um namoro de seis meses. De repente calhara olhar para a Luz. Pensara: já somos colegas há anos e nunca lhe conheci um namorado; e até que era bonita, com os seus longos cabelos escuros e os olhos claros. Era magra e branca, embora não se arranjasse muito. Perguntara-lhe se não gostava de ninguém e ela ficara perturbada, meio corada, sem conseguir fitá-lo nem responder-lhe. Aproximara-se então e dissera-lhe que ela era bonita e que já gostava dela há algum tempo. Aí ela já olhara para ele com um ar meio frágil e incrédulo que quase conseguia ver agora. Pobre Luz. Pelos vistos ela é que já gostava dele há muito tempo. Não tinha defesas, nem experiência e ele era muito jovem e irreflectido. Lembrava-se do pavor que sentira quando ela lhe contou que estava grávida. Olhara para ela e achara-a feia, com o nariz vermelho e os olhos de choro, mal arranjada. Fugira. Soubera depois que ela tinha feito um aborto e aquilo correu mal. Ficara estéril. Nunca mais se falaram.

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