Amor sem desespero
Ana
não sabia demonstrar o que sentia, com abraços ou beijos. Saía aos
pais. Pessoas sérias, trabalhadoras, a quem ninguém tinha nada a
apontar. Saíam cedo de manhã para o trabalho. Deixavam a filha na
escola. Regressavam no final do dia. Metiam-se em casa. A mãe cozinhava,
enquanto o pai lia o jornal. Ela fazia os deveres da escola.
Deitavam-se cedo. Domingo de manhã iam à missa. A mãe investia mais no
almoço. O pai dormitava de tarde. Viam televisão e deitavam-se cedo, que
o dia seguinte era de novo dia de trabalho. Ana foi até ao 9ºano, com
boas notas. Começou a trabalhar ao lado da mãe nas limpezas, passou
depois a substituí-la, ficando a mãe como queria em casa, entregue aos
seus afazeres, finalmente com um pouco mais de tempo para si, agora que
tinha a filha criada. Chegou aos vinte anos solteira, sem nunca ter tido
um namorado.
Já
ao Rui, com vinte e cinco anos, não lhe faltaram namoradas. Chegou a
ter duas ao mesmo tempo e mais do que uma vez. Não era nada bonito o
rapaz. Magro e desengonçado, quatro olhos na escola, com lentes
garrafais que lhe deixavam os olhos pequenos. Foi logo dado como não
apto para o serviço militar. Sem óculos não via nada, seria um perigo
com uma arma na mão. Ficou a trabalhar na loja do pai e tinha jeito para
atender os clientes, organizar os livros, tratar com os fornecedores.
Era bem-falante e engraçado. Aproximava-se como amigo, puxava as meninas
para dançar nos bailaricos da vila. Fazia-as rir. Mas o tempo que
levava um fósforo a arder, desinteressava-se. Normalmente tão cedo que
elas nem tinham tempo de se ligarem a ele de uma forma mais séria.
Entusiasmavam-se, mas depois aceitavam que ele se afastasse. Afinal ele
era assim. Gostava de todas, acabava por não ser de nenhuma.
Ora,
estranhamente porque via tão mal que facilmente iria contra uma porta,
reparou o Rui primeiro que a Ana era uma rapariga como as outras. Era
calada e séria. Não se fazia ouvir e pelas roupas modestas que vestia,
não se fazia ver. Usava o cabelo preso. Raramente levantava os olhos
para ver fosse quem fosse, embora tivesse os olhos bonitos, castanhos,
com pestanas invulgarmente compridas, como as publicitadas por marcas de
rímel que só na televisão assim apareciam. Tentou o Rui meter conversa
com ela, mais do que uma vez, e não conseguiu nada. Ela mal lhe
respondia. Bom dia, boa tarde, tenho de ir que já é tarde. Tornou‑se um
desafio para ele conseguir arrancar-lhe mais do uma frase, tentar que
ela permanecesse mais alguns minutos na sua companhia. Começou a reparar
que ela era bonita. Definiu uma estratégia que passava por cruzar-se
com ela no início de cada tarde, quando ela retomava ao trabalho após
almoçar em casa. Do boa tarde, perguntava-lhe se podia acompanhá-la
parte do caminho, se ela nada respondia, interpretava-o como
consentindo. Já sabia que era melhor não a interpelar, porque ela não
respondia, só apressaria o passo e se despediria. Fazia por cativá-la
com descrições simpáticas do que se passava em redor, bem atento a
qualquer sinal de interesse para escolher o tema. Eram só alguns
momentos porque cedo ela chegava à casa onde iria prestar serviço. Mas
pouco a pouco ele ia conseguindo que durassem mais. Media o seu sucesso
no andarem mais vagarosamente, em obter uma paragem, um olhar. Um dia
conseguiu dela uma pergunta.
Ana
passou a reparar no Rui, e a dar valor àqueles minutos. Ao Domingo não
ia trabalhar e não se viam. Do melhor dia da semana tornou-se o pior,
sem que ela percebesse bem porquê. Pela primeira vez desejou ser
diferente, mais extrovertida, como se lembrava que algumas colegas na
escola eram. Ser mais bonita, ter outras roupas. Não achava que alguém
pudesse gostar dela, da forma que era, mas antes não pensava
propriamente nisso, não se importava
Um
belo dia, ele resolveu convidá-la a ser o seu par, na festa de sábado
da vila. Apanhada de surpresa, Ana assustou-se. Disse-lhe que não, e
voltou a apressar o passo, mal se despediu dele. Ao entrar na casa onde a
esperavam, queria chorar, mas escondeu o que sentia. Queria ter dito,
sim.
Rui
não percebeu aquela regressão. Nunca antes tinha gasto tanto tempo a
tentar conquistar uma rapariga e pelos vistos tinha sido tudo em vão. Já
lhe tinha acontecido várias vezes apanhar com um não, mas não se tinha
importado, conformava-se e ia pregar a outra freguesia. O orgulho
levemente ferido recuperava com o sim que conseguia de uma amiga da
primeira. Daquela vez, não queria convidar outra e também não percebia
porque se sentia zangado. Decidiu que não ia perder mais tempo com a
Ana, que não voltaria mais a esperá-la no início da tarde e enquanto o
decidia, sem o compreender, sentia que iria sentir a falta de a ver e
mais zangado tal o fazia.
E
porque estava zangado ou porque via mal, meteu-se a atravessar a rua
sem ver o carro que vinha mesmo quase à sua frente. Felizmente seguia
devagar e atento o seu condutor. Travou e embateu-lhe só de leve,
fazendo-o contudo cair. Com o barulho da travagem e porque eram muito
raros os acidentes na pequena vila, juntaram-se todos os desocupados à
sua volta.
Ana
que na altura passava pela janela e mais tarde diria que o seu coração
adivinhou, viu o que tinha sucedido. Largou tudo e veio a correr. Chegou
tão depressa que ele ainda estava no chão e agarrou-se a ele sem o
querer largar. O corpo dela pesou-lhe e fez com que fosse um pouco mais
difícil levantar-se. Teve que
repetir-lhe várias vezes que estava bem. Mas a zanga tinha-lhe passado
por completo e sentia-se mais feliz do que se lembrava de alguma vez se
ter sentido. Quando já todos os demais se tinham afastado, perguntou-lhe
de novo se queria ir com ele ao baile e ela pendurada no seu braço,
respondeu-lhe logo que sim.
Nenhum comentário:
Postar um comentário