Setenta e dois anos, fisicamente
não muito bem, mas a aguentar com alguns cuidados e desistências, de cabeça,
bem, talvez bem demais para se aperceber do que se passava à sua volta. A Helga
tinha morrido há mais de vinte anos, atropelada numa passadeira por um condutor
embriagado. Ficou logo ali. Com sorte nem se terá apercebido. Os filhos já eram
crescidos. Muito ocupados a afirmarem-se nos seus trabalhos, assim tinham
continuado. Falavam-se pelo Natal e pelo Verão, mas nem se encontravam. Nunca
tinham sido muito próximos. A mãe tinha sido sempre a ponte entre eles. O Rui
tinha emigrado. Casara lá pela Suíça. Não tinha filhos. Já cá não vinha há
anos. O Pedro, o mais novo e o orgulho da mãe, formara-se médico, com
especialização em neurologia, trabalhava em Lisboa, em dois grandes hospitais.
Sempre muito ocupado. Dois casamentos e dois divórcios, também sem filhos e sem
tempo par vir visitar o pai. Ele ia bem, com as suas rotinas. Almoçava numa
casa da esquina. Conhecia o dono. Duas vezes por semana, a Dona Maria vinha
fazer-lhe a limpeza da casa. Também lhe fazia sopa uma vez por semana, mas a
durar pelos sete dias. Era o seu jantar. Antes tinha o hábito de a seguir ao
jantar passar pelo café da vila. Pouco a pouco deixou de o fazer. Os rapazes do
seu tempo morreram ou os filhos puseram-nos num lar na cidade vizinha.
Apercebia-se do sozinho que estava, mas ia fazendo a sua vida. Até que um dia,
ao jantar, a seguir à sopa, comeu um pouco de pão com queijo e vinho. E não lhe
caiu bem. Resolveu ir deitar-se mais cedo. Apesar das insónias, pelo menos na
cama estaria quente. Assim pensou, o fez. Vestiu o pijama, meteu-se na cama e
apagou a luz. Não encontrava posição. Sentiu-se gelado e percebeu que estava
com suores frios, o pijama colava-se-lhe ao corpo magro. Algo lhe apertava o
peito e o escuro do quarto pesava-lhe, não havia barulhos, televisão, vozes ou
trânsito. A aldeia, meio vazia era tranquila. Mas naquela altura, o silêncio
surgiu-lhe como ruidoso, parecia-lhe que ouvia o sangue a correr-lhe na cabeça,
o coração a bater-lhe no peito. O peso no peito passou a dor que lhe subia
também pelo braço e parte de si percebeu. Devo estar a ter um ataque. Aqui
sozinho quem me vai valer. Será que consigo chegar ao telefone? Ainda não.
Mesmo a minha vida não sendo muito, é cedo ainda. Não me despedi dos meus
filhos. Não preparei nada. Não se conseguia mover, o latejar na cabeça, a dor
no peito aumentavam e aumentavam, não conseguia respirar e tudo começou a ficar
ainda mais escuro e sentiu-se a cair. Perdeu consciência.
Começou a sentir que despertava,
como no Domingo ou no primeiro dia de férias quando era garoto e sabia que
podia continuar na cama mais algum tempo, sentia os lençóis quentes e o
travesseiro fresco, a luz a chegar-lhe pelo que pensou primeiro serem as fresta
da persiana e no ar cheirou o pão acabado de cozer e o café. Pouco a pouco
foi-se lembrando. Não era jovem há muitos anos, a sua casa de infância já nem
existia e a sua mãe, que cozia o pão e fazia o café também já tinha morrido há
quase tanto tempo quanto aquele em que deixara de ser jovem, passara a ter
responsabilidades, trabalho e família a seu cargo. Depois foi-se lembrando de
onde estava no que lhe parecia ser ontem. A Helga tinha morrido, os filhos
estavam longe e ontem tinha pensado que morria. Ficou com receio de abrir os
olhos. Será que tinha morrido mesmo, ou estaria num hospital? Decidiu-se a
abri-los e a luz primeiro não o deixou ver nada. Tudo lhe parecia branco.
Foi-se habituando à luz e apercebeu-se que não estava deitado como pensara
primeiro, mas sentado, sentado num banco branco num compartimento como a
carruagem do comboio também branco, sem janelas, com bancos dos dois lados,
vazios. Não via o início ou final, não via mais ninguém por ali, nem se
apercebia de onde via a luz e sentiu que estava em movimento, e não seria só
pela sugestão da comparação com o comboio. Quase conseguia sentir as curvas e
alguns ligeiros estremecimentos, tal qual como num comboio. Pensou onde estou e
resolveu dizê-lo, ouviu a sua voz que soava como a sua voz. Levantou os braços.
Olhou para as suas pernas. Estava vestido com uma espécie de pijama, mas as
suas mãos não eram mais as de um velho, reconhecia-as como tinham sido há
muitos anos. Isto não deve ser um hospital. Não conheço nenhum que seja assim.
E não faria sentido uma droga ou um sonho tão real e tão estranho. Portanto
devo ter morrido e estou a ir para algum lado. Continuou intranquilo. Pensou,
não fui um homem mau, mas também não fiz nada de bom. A Helga era o que havia
de melhor em mim. Nunca se zangaram com gravidade, nunca se separaram, nunca
trocaram palavras tão duras. Seguia as sugestões dela também quanto ao que
fazia pelos outros. Se dava algo a alguém que precisava, mesmo que ainda não o
tivesse pedido, tinha sido a Helga a lembrar-lhe dos problemas que o Lopes ou a
D. Ana estavam a passar. E também era perante ela que ajuizava o que era
importante. O que lhe contavam no trabalho ou no café, era quando no final do
dia conversavam que se apercebia. Não era simpáticos troçaram do Nabais porque
gaguejava e o colega que abdicara da promoção para cuidar da mãe doente, não
era o palerma que desperdiçava uma oportunidade, mas um bom filho. Eram
felizes, sem que o soubesse. Costumava pensar em como tinha sorte quando
assistia ou lia sobre problemas entre outros casais. Costumava pensar que tinha
sorte até ao dia do acidente. Agora e ali pensou se estaria a viajar para o céu
ou para o Inferno, se poderia reencontrar a Helga. Desejou como nunca ter sido
melhor. Ter estado à altura de merecer encontrar-se com ela. Então, com um
estremecimento, aquela espécie de vagão parou. À frente, ouviu uma porta
abrir-se e mais luz entrou por ela. Levantou-se e avançou na sua direcção.
Alguém entrou. Um vulto, mais baixo que ele, também com um pijama branco, mas a
luz não deixava que lhe visse o rosto. Veio ter com ele, e quando estava mais
perto, percebeu que era a Helga. Mais jovem, os olhos azuis doces, sem rugas,
ela sorriu-lhe e disse-lhe, com uma voz que lhe soou como a sua: "Ainda
não". E nesse momento, quando o que mais queria era ficar ali e abraçá-la,
sentiu-se de novo cair. Voltou o peso no peito, sentiu que lutava para
respirar, a escuridão fechou-se sobre si. Quando despertou de novo, ganhou
rapidamente consciência, identificou os sons à sua volta como os de um
hospital. Olhou à sua direita e viu o Pedro a segurar-lhe a mão.
"Pai" ele disse-lhe. Parecia tão mais velho desde a última vez que
tinham estado juntos e parecido com a mãe. Deve estar também a chegar aos
cinquenta, a idade que a Helga tinha quando morreu. Firmou os seus nos olhos
azuis do filho e disse-lhe "ainda não". E pela primeira vez desde há
muito tempo, tanto que nem saberia quanto, soube que estava feliz, por estar
ali, e porque sabia um pouco mais sobre a viagem que o esperava, que não seria
a última, mas como a primeira, como sempre acontecia quando de novo se
encontrava com a Helga.
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