domingo, 24 de julho de 2016

ii - 05/10 - Diálogo



Luzes de presença em jogo de sombras, no silêncio meio interrompido pelos passos abafados de solas de borracha.
O som das campainhas substituído nos corredores pelas luzes vermelhas sobre a porta dos quartos.
Não se ouvem gritos. Palavras, gemidos e medos estarão contidos nos quartos.
O tumor foi detectado num exame de rotina. Nem teve tempo de pensar enquanto tratava dos assuntos prementes, a substituição no trabalho e o internamento. Chegou de manhã em jejum. Vestiu uma espécie de bata. Raparam-lhe a barriga. Levaram-no para a sala fria da cirurgia onde perdeu consciência e caiu num sono pesado como não se lembrava de alguma vez ter tido. No recobro, perguntaram-lhe o nome e levaram-no de volta ao quarto. Era preciso esperar pelos resultados do laboratório e investigar se haveria metástases noutros órgãos.
Dor dormente graças à droga que lhe tinham dado, mas desperto deu-lhe para pensar na vida. Ateu convicto, pela primeira vez confrontado com a sua mortalidade, não conseguia descansar. Levantou-se da cama, agarrado ao soro, saiu para o corredor e sentou-se perto de uma janela.
Apercebeu-me que alguém se sentava ao seu lado. Mais tarde não seria capaz de o descrever, sem dúvida pelo seu estado.
- De que tens medo, Pedro?
Estranhou que soubesse o seu nome, mas respondeu-lhe:
- Do fim. Ainda tenho tanto para fazer.
- Não vai ser agora, tens muitos anos à tua frente, mas devias repensar o que tens para fazer, o que é realmente importante.
- Como o que é realmente importante?
- Tens vivido para o trabalho, os teus pais já morreram, não tens mulher, filhos ou amigos íntimos, nada costumas fazer pelo teu próximo.
Pedro sentiu-se de repente cansado. Regressou ao quarto sem se despedir.
No dia seguinte apresentou queixa contra o Emanuel mas ninguém soube dizer‑lhe quem era.

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