domingo, 24 de julho de 2016

II 1/10 O bilhete



Estava à procura das chaves do carro na carteira quando o viu, um pedaço de papel amarelado. Pegou nele e leu o que tinha escrito: “Quando abrires os olhos verás”.
Devia ser da Ermesinda. Tinha-a visto na confeitaria de onde acabara de sair. Ultimamente cortava rente todas as conversas daquela intriguista e ela devia tê-lo escrito para a incomodar, como se algo na sua vida não fosse como devia ser.
Tudo certo como Deus manda. 
O seu marido, Raul, um santo, ficara em casa adoentado, mas insistira em que não faltasse ao clube de leitura: “vai filhinha, sei como gostas de ir, eu fico bem”.
Imaginou-o em casa sozinho e de imediato decidiu. Ia era levar-lhe os bolos que tinha comprado para o clube, fazia-lhe um chá, contava-lhe do bilhete, rir-se-iam, e não teria mais importância.
Dito e feito, já no carro, inverteu a direcção e foi para a casa.
Estacionou perto da entrada e não pôde deixar de reparar que mais à frente, estava o carro vermelho da Luísa da farmácia, um pouco escondido sob a sombra do velho cedro. Era uma mulher vistosa na qual os homens reparavam, sobretudo depois de se ter separado.
Saiu do carro e empurrou o portão. Seria capaz de jurar que o tinha deixado fechado no trinco, mas estava entreaberto.
Abriu a porta de casa, entrou no hall a meia-luz, e ouviu o som de uma respiração arfante.
Nessa altura, pareceu-lhe que o coração lhe parava no peito.
Ai se o papel era verdadeiro e tinha andado de olhos fechados!
O barulho parecia vir do quarto e foi para lá que se dirigiu.
Viu primeiro a Luísa, com uma bata curta e atrás dela, sentado na cama o marido, em inalações para a constipação.
Voltou a respirar. O seu Raul era um santo.

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