domingo, 24 de julho de 2016

ii - 8/10 - Sentir



Céu cinzento, no meio do campo, perto da aldeia, mais do que o incêndio para os que ali moram, o acontecimento é estar lá a televisão. Estacionaram a carrinha com o símbolo do canal, um senhor tirou de lá a câmara, e à sua frente, a jovem jornalista de saltos altos, depois de falar com o chefe dos bombeiros, elegeu-a para ser entrevistada:
- "Estamos aqui com a filha dos proprietários"
Teve de corrigi-la:
- "Prima da amiga da filha, mas a minha prima há anos não fala com ela"
A jornalista interrompeu-a:
- "Então como é se sente ao ver a casa a arder?"
Sentir, ou não sentir, não sabia bem o que deveria sentir para lhe dizer, mas antes de começar a falar, a jornalista insistiu:
"Sente-se mal?"
E aí já pôde responder:
- "Sinto-me muito mal porque eles tinham gosto na casa, acho, porque nunca lá entrei”.
Atrás delas, no rescaldo do incêndio vê-se a porta e as paredes enegrecidas da velha casa. Rebentaram os vidros da janela, mas de resto aparentemente mantém-se sólida.
Um bombeiro a recolher a mangueira faz-lhes sinal para recuarem, recua o senhor que segura a câmara, recuam ela e a jornalista que tropeça, mas não cai e prossegue determinada:
- “Eles tinham coisas de valor aqui, era?"
- “Deviam ter, sabe,  mas já não vinham há muitos anos porque estão na França”
 - “Como é que eles se vão sentir com isto?
Agora ela já sabia a resposta:
-  "Vão-se sentir muito mal".
- “E na aldeia, como é que sentem?”
- “Sentimo-nos muito mal, está a ver, a casa estava aqui há muitos anos.”
Conclui a jornalista a reportagem: “O fogo na aldeia de Argodêlo deixa uma família sem casa.”
Pensa ela, está cá a casa, mas não a família…

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