domingo, 24 de julho de 2016

Natal

Natal
Klaus tinha aproveitado a tarde para as suas últimas compras. Em cada final de Dezembro decidia que no próximo Natal ia planear e arranjar tudo com antecedência, para no ano seguinte chegar de novo a dia 24 com quase tudo por fazer. Felizmente e como de costume ia jantar a casa da irmã e do cunhado, com os pais e o irmão deste, os sobrinhos, e às vezes mais algum amigo deles. Lembrou-se que seria melhor levar também prendas extra como chocolates para prevenir estar lá algum amigo ou amiga deles. Tinha conseguido encontrar todos os presentes da sua lista – os brinquedos escolhidos pelos sobrinhos com a aprovação da mãe, uma caixa de ferramentas para o cunhado – no ano anterior revelara-lhe a intenção de começar a fazer alguns trabalhos em casa e apostava que ainda não teria sequer começado. Ia gostar da caixa, mesmo que depois não a utilizasse. Chocolates para a irmã e para os sogros dela, um cheque livro para o cunhado dela e mais chocolates embrulhados para outros possíveis convidados.
O centro comercial escolhido, o mais perto da sua casa, estava cheio. Tinha sido difícil conseguir um lugar para estacionar. Só o encontrara depois de algumas voltas e de ter seguido um casal carregado de prendas. Tinham correspondido às suas expectativas guardando cuidadosamente os seus embrulhos no porta bagagens, seguindo depois e deixando-lhe o lugar livre. Lá dentro, pareciam todos empenhados em entrar para o Guiness como o maior número de pessoas num centro comercial, enervados uns com os outros e com a falta de espaços livres, e a correr apressadamente de um lado para o outro. Tentou conservar o espírito de Natal e ser educado em todas as lojas a que foi, não obstante a pressa e falta de paciência com que deparou. Os funcionários das lojas, na sua maioria, não pareciam dotados de paciência ou talvez tivessem sido contagiados pela impaciência dos clientes apressados.
Já com todos os seus embrulhos – a lista tinha-o ajudado, assim como o recurso às prendas de chocolates – iniciou o caminho de volta para o carro. E foi então que sentiu que o observavam. Não sabia explicar essa sensação. Talvez tivesse visto alguém a olhar para si pelo canto do olho, meio inconsciente, até voltar a notar esse alguém. Olhou em redor e viu a alguns metros um homem de idade a olhar para si. Não havia dúvidas, o homem estava mesmo a olhá-lo, fixamente. Pensou que bastaria dar-lhe a perceber que o tinha detectado para que mudasse de alvo, mas isso não aconteceu. O homem continuou a olhar para ele e fez mais, começou a aproximar-se com pequenos passos. Era um homem de sessenta e tal ou mais anos, de cabelo e barba grisalhos, baixinho e com barriga. Vinha na sua direcção, sem deixar de o olhar, com passos curtos. Depois de o ter encarado, Klaus decidiu que não daria mais para fingir que não o via e seguir em direcção ao seu carro, por isso esperou por ele. Quando finalmente chegou ao pé de si, o homem parou, olhou para ele e disse-lhe: “Klaus está na hora de trocarmos de novo”. O homem levantou a sua mãozinha gorducha onde no dedo indicador brilhava num anel uma pedra vermelha e tudo pareceu parar naquele momento. À volta deles, as pessoas continuavam apressadas, mas ele e o homenzinho pareciam fechados num círculo frio e imóvel. Sentiu-se como que sugado para dentro do homem e de repente estava a olhar para si mesmo, mas sem ser com um espelho. Via-se, alto, quarentão e louro, está bem, já um bocadinho grisalho, o solteirão cuja própria irmã já tinha desistido de lhe arranjar uma esposa, que vivia bem sozinho, não fazia falta a ninguém e andava normalmente sempre bastante satisfeito consigo próprio. Viu‑se a respirar de alivio, ouviu a sua voz a dizer: “por fim, posso ser eu de novo”. Olhou para as mãos, para aquelas que agora apareciam como as suas mãos, mais pequenas e papudas, e no  dedo indicador, a pedra vermelha de um anel parecia ter gasto o seu brilho. O seu eu, olhou-o de alto para baixo e disse-lhe: “Agora tenho dez anos para viver com este corpo e tu Klaus tens de tratar do Natal”. Logo de seguida, o seu corpo virou-se e fugiu-lhe a correr. E Klaus lembrou-se de repente que tinha de arranjar prendas, muitas mais prendas porque era Natal.

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